1. A perspectiva da qual este texto fragmentado parte é menos um ponto fixo do que uma linha longitudinal. Ela atravessa um meridiano necropolítico, ligando os Estados Unidos e o Brasil sob Trump e Bolsonaro e seus assessores e facilitadores ideológicos, financeiros e corporativos. Percorrer essa linha nesses últimos três meses de pandemia do novo coronavírus é tomar conhecimento do espelhamento transnacional das (não) políticas federais que cada país agora oferece um ao outro e compreender que o que estamos enfrentando é um novo experimento altamente contaminante em governamentalidade neoliberal. Ambos os países estão criando, diante de nossos olhos e em velocidade vertiginosa, o que o filósofo político Vladimir Safatle chamou recentemente de “estados suicidários… a serem exportados” (veja seu extraordinário “Bem vindo ao estado suicidário”, que abriu esta série ConTactos). Usando uma expressão de Paul Virilio, mas acrescentando a ela uma urgência e uma lucidez sociopolítica precipitadas pelas maneiras como o Brasil conseguiu, com máxima eficiência, transformar a pandemia do novo coronavírus em um verdadeiro ato necropolítico de genocídio de populações negras, indígenas e pobres patrocinado pelo Estado, podemos ver a definição de Safatle do “Estado suicidário” como o fim lógico do desmonte neoliberal da democracia liberal.
2. Tomar uma perspectiva crítica deambulatória ao longo da linha de morte que liga as Américas do Norte e do Sul é também propor uma metodologia para pensar sobre a atual (não) gestão da pandemia no Brasil e nos Estados Unidos pelo viés do movimento. Não porque as teorias da dança e do movimento sejam meus campos de pesquisa e trabalho, mas pelo fato de que as condições de possibilidade de ação, as condições de possibilidade de imaginar e performar ação são predicadas por uma luta contínua entre diferentes concepções estéticas, filosóficas e políticas do que é movimento, do que o movimento faz e a quem pertence o movimento. Enquanto algumas populações em diferentes partes dos Estados Unidos e do Brasil começam a emergir de confinamentos mais ou menos severos, de estados de emergência mais ou menos locais e de diferentes estados de calamidade, enquanto a pandemia assola comunidades seguindo coordenadas espaciais e temporais traçadas por linhas de pobreza e exclusão, uma verdadeira batalha de vida ou morte sobre o poder político do movimento e a força política da imobilidade está sendo travada. Nessa luta, a lógica da aceleração do capital, a lógica dos bloqueios e do confinamento generalizado, a lógica do distanciamento social e da interatividade remota, a lógica da expansão (branca) e da contração (econômica), todas pressupõem – e também reificam e impõem – um certo entendimento hegemônico das relações entre poder e movimento, subjetividade e movimento e agência e movimento.
3. Pensar em atividade e, portanto, em inatividade nos últimos três meses de pandemia do novo coronavírus é pensar em como a (má) gestão da crise sanitária tem sido baseada em aprimorar diferenciais de mobilidade e em encontrar palavras politicamente palatáveis para descrever as decisões políticas sobre restrições ao movimento. Apesar das muitas expressões diferentes escolhidas entre nações e dentro de regiões para designar as modalidades variadas de distanciamento social, restrições ao movimento e quarentena, essas expressões revelam sempre um inconsciente político cinético que informa a coreografia social imposta à população em geral. Pairando entre a suspensão do fluxo de vida “normal” (como na expressão escolhida pelo estado de Nova York, “Nova York em Pausa”) e a paralisação do fluxo de vida “normal” (como em “confinamento” ou “lockdown”, esta última expressão utilizada, também em inglês, em várias cidades brasileiras), uma coisa é certa: o movimento foi colocado em prisão domiciliar.
4. Para muitos (na verdade, segundo as pesquisas, para a grande maioria da população tanto do Brasil como dos Estados Unidos), teria sido uma opção semântica e de saúde pública mais simples e mais ética nesta pandemia ter encontrado outras opções para denominar o movimento social de solidariedade necessário. Pois esse movimento não é nem uma pausa nem uma suspensão, não é um “abrigo em casa” (shelter-in-place) ou um lockdown, e definitivamente não é uma parada. É, antes, uma retirada movida pelo desejo de agir em apoio mútuo e uma desaceleração do ritmo público da vida cotidiana de modo a expressar o respeito fundamental e absoluto pela vida do outro. O respeito absoluto pela morte do outro. Não é tão difícil imaginar essa possibilidade de desaceleração ética e de apoio mútuo por afastamento que poderia ter sido promovida pelos governos e suas agências. No entanto, as necropolíticas neoliberais nos Estados suicidários do Brasil e dos Estados Unidos nada têm a ver com este tipo de imaginação mais cuidadosa com a vida em geral.
5. Assim, no lockdown, na pausa, na suspensão, à medida que nossos movimentos, gestos e ações sofrem transformações radicais, comprimidos como estão aos limites definidos pelas nossas paredes, logo percebemos que nada realmente parou. Nem dentro de nossas casas nem no mundo exterior, onde moradores de rua sobrevivem à mercê de mais ou menos negligência planejada, de maior ou menor brutalidade policial, de alguma ou nenhuma caridade. Abrigados em casa, percebemos que o que o atual estado de emergência declara não é o respeito pela vida – uma vez que, na emergência, a morte de populações marginalizadas não é uma questão sobre a qual o capital e o poder se detenham nem por um segundo sequer. O que a emergência possibilita, sobretudo, é a concessão de permissões para o movimento: quem, quando, como e para onde. Suspensos, percebemos que a gestão, a vigilância e o controle do movimento se tornaram um fato central na pandemia. A experiência vivida no confinamento não tem sido de pausa; a sensação é de que o movimento foi apenas deslocado ou re-modulado. As metáforas de “pausa”, “reclusão” e “suspensão de atividades” somente mascaram a hiperatividade do capital e da polícia (o capital enquanto polícia) durante o confinamento e como confinamento.
6. Na exceção provocada pela pandemia, corpos que trabalham em quatro categorias profissionais têm permissão para circular: policiais, profissionais da saúde, os que manipulam cadáveres (agentes funerários, coveiros, etc.) e os que trabalham na cadeia de abastecimento alimentar (de trabalhadores da colheita/açougueiros e intermediários até trabalhadores de restaurantes e coletores de lixo). Não que todos os demais não estivessem trabalhando – apenas seus movimentos foram restringidos. Os desempregados foram mantidos ocupados, passando intermináveis, incontáveis horas em seus telefones e computadores ou em pé em filas sem muito distanciamento social para requerer auxílio do governo ou tentar encontrar outro emprego. Os empregados ficaram ocupados passando intermináveis, incontáveis horas em seus telefones e computadores, sentados em suas casas agora finalmente transformadas em um espaço de trabalho sempre aberto para negócio. E, se alguns ainda podiam circular (os trabalhadores essenciais cujas vidas passaram a ser arriscadas, revelando o quão verdadeiramente dispensáveis permanecem tanto para o Estado como para o capital), todos os demais já não precisavam ser rastreados pelos aparelhos eletrônicos que compõem o que Shoshana Zuboff chamou de “capitalismo de vigilância”. Ou seja, todos os demais foram capturados. No confinamento, acima de tudo, fomos disponibilizados.
7. No confinamento, experimentamos um rearranjo radical do alcance de nossas ações e de nossos movimentos – enquanto nos tornamos agudamente conscientes do impacto absolutamente extra-individual, comunal, coletivo, societário e até planetário dos nossos menores gestos (Judith Butler escreveu um belo ensaio sobre esse tema, na segunda parte da série ConTactos). No confinamento, supostamente parados na suposta pausa, experimentamos tanto a hiperagitação de políticos e corporações tentando manter coisas, capital e commodities em movimento permanente e sem atrito, como também temos a sensação de que, talvez, outra lógica e outra cinética não compulsivas, anticapitalistas e não oportunistas para o político se fazem no posicionamento da paragem (standstill). Confinados, percebemos como a pandemia se tornou uma grande oportunidade para o poder neoliberal de se reafirmar como “ascensão de políticas antidemocráticas no ocidente,” para citar Wendy Brown. Escutamos a implacável, enfeitiçante, estonteante e ruidosa hiperatividade da polícia, do capital financeiro e corporativo, e da cinética neofascista tecendo o (e pisoteando no) necromeridiano das Américas. E, no entanto, há potência na nossa paragem.
8. A modernidade liberal alinhou, ao ponto da total fusão, a noção de liberdade individual com a noção de livre movimento individual – é quase impossível, para a maioria de nós, herdeiros do inconsciente cinético político liberal, imaginar a liberdade sem imediatamente alinhá-la, espontaneamente, à noção de “livre movimento” como sua base (mesmo quando pensamos, por exemplo, na liberdade de expressão, a imaginamos como o livre movimento do pensamento…). Agora, tal fusão cria imediatamente um problema, revelando a contradição cinética fundamental no seio da (i)lógica subjetividade democrática liberal. É essa contradição que o atual fascismo neoliberal tenta resolver, isto é: dado que o movimento é a promessa que agita o projeto de liberdade liberal, ele deve, por isso mesmo e necessariamente, se tornar aquilo que a governança deve policiar, gerir, controlar e vigiar.
9. Como todo dançarino sabe (ou como qualquer ser movente que, a partir de sua experiência vivida, experimenta o que Hélio Oiticica certa vez chamou de “a imanência do ato” também saberá), à medida que o movimento move, ele tende a oferecer, em infinito florescimento, possibilidades sempre novas e imprevistas para (mais, outros) movimentos. O florescimento dessas possibilidades perpetuamente móveis (a que também podemos chamar de borrão opaco da potencialidade) desfaz as fronteiras que sustentam a ficção do sujeito liberal autônomo e auto-móvel. Por isso, a contradição: é pelo movimento que se escapa dos aparelhos disciplinares de captura; mas é também pelo movimento que os sistemas de poder perfuram e quebram um sujeito até à sujeição, tal como se amansa e se doméstica um animal selvagem (como Henri Lefebvre observou tão bem).
10. O que é o movimento, onde ele existe, como pode ser identificado, como deve ser implementado e executado e, acima de tudo: como pode ser previsto? Podemos ver como o movimento é essencial para a máquina de guerra do estado liberal, ao expandir seu domínio, ao criar sua vida e garantir sua sobrevida. Uma vez que o movimento se tornou o principal vetor de subjetivação para a modernidade e a governança liberal (isto é, para o expansionismo colonial branco e sua logística, para o capital global e seu cineticismo, desde os procedimentos gestuais da manufatura na linha de produção até à educação motora especializada do cidadão autônomo, auto-motivado e auto-móvel), tornou-se fundamental para o poder estatal se envolver, literal e diretamente, na produção e na gestão do movimento. Particularmente, na definição da ontologia do movimento, sua localização, sua natureza, seus corpos, seu escopo, seu domínio e suas leis universais.
11. Chamemos qualquer movimento que resulte da ação de forças externas (não apenas como na primeira lei universal do movimento de Newton mas também, por exemplo, o movimento iniciado pela força de uma palavra autoral autoritária de um coreógrafo, ou de um comando do soberano, ou de uma diretiva corporativa, ou de uma máxima patriarcal, ou de um insulto branco-expansionista, ou de um chamado policial) de “transcendente” ou “movimento forçado” – seguindo Gilles Deleuze seguindo François Chatelet. O movimento, sendo capturado pelo poder, se torna transcendente e passa a ser forçado por via de forças externas “vindas de cima” sobre os sujeitos a ele sujeitados. Nesse momento, o movimento deixa de ser um direito e passa a ser uma graça – concedida de acordo com critérios “universais” que alimentam a mobilização perpétua de normatividades.
12. O que acontece na cinética neoliberal, no atual projeto de policiamento do movimento implementado em nossa fase avançada, necropolítica e neofascista do capitalismo? Enquanto pessoas negras, indígenas, racializadas, pessoas de gêneros não-conformes e outros corpos minoritários são abatidos longe da (obs)cena da subjetividade circulatória normativa, o corte neoliberal, essa “revolução furtiva” na subjetividade, na governamentalidade, no capital e no policiamento (nas palavras de Wendy Brown) estende, mas também se afasta da anterior lógica liberal de gestão do movimento. Na não-governança neoliberal, a logística não só estende o projeto cinético liberal ao seu limite, como também faz irromper outra compreensão, simultânea e sobreposta, do movimento e seu controle: já não é mais suficiente formatar, impor, gerir e prever o movimento, como na lógica cinética liberal. Agora, é o próprio movimento, o movimento como tal, que deve ser colonizado a partir de dentro. Isso é alcançado por meio da criação de atividades extrativas totais sobre experiências de movimento individuais. Não há limite para essa colonização e monetização do cinético do indivíduo neoliberal, nem a carne do seu corpo, nem mesmo a sua dor. Sexo, amor, sono, falta de sono, pele, dentes (de preferência sempre certinhos, sem manchas e “extra-brancos”), dietas, humores, inatividades e também atividades… tudo se torna ocasião para uma pilhagem mercenária de tudo que possa ser saqueado atrás da linha do inimigo. O inimigo, claro, é a própria vida. Fred Moten esclareceu ainda melhor o inimigo primordial dessa lógica necrocinética extrativista neoliberal: a Vida Negra.
13. A dobra neoliberal é também uma dobra em direção ao doméstico. O confinamento neoliberal da subjetividade em um “abrigo-em-casa” livremente desejado, apenas na medida em que é movido por puro interesse próprio e que precede a pandemia, revela que o corpo consensual neoliberal não é mais um agente do (seu próprio) movimento (da sua própria vida). O corpo consensual neoliberal passa a ser o próprio terreno do movimento, sua sepultura, sua mina e seu filtro. Seus “movimentos livres” são totalmente reflexivos, automáticos. Se o poder cinético neoliberal precisava da contínua domesticação policiada das ruas, o cineticismo neoliberal exige uma gestão corporativa extrativa dos movimentos impulsivos do corpo “livre” em casa – onde a casa é definida como qualquer lugar onde o aplicativo mais recente possa chegar até você e lhe penetrar de modo a extrair de sua vida mais capital sem vida. Paul Preciado fala lindamente dos esboços iniciais dessa lógica neoliberal de contração total do movimento liberal disciplinado ao ar livre e da passagem para um confinamento-como-disponibilidade doméstico-celular-fármaco-pornográfico neoliberal. Em seu livro Pornotopia, Preciado descreve a formação de um corpo patriarcal-hetero-cis-doméstico, permanentemente ligado aos pulsos elétricos do capital e sempre disponível para o trabalho permanente e o consumismo impulsivo.
14. E no entanto, e ao mesmo tempo, como Gilles Deleuze e Félix Guattari e Henri Bergson e Suely Rolnik e Fred Moten e Christina Sharpe insistem, o movimento permanece onto-politicamente aquilo que nunca será totalmente capturado. O movimento, assim, não é apenas o que permite (um sujeito) escapar. É a própria fugitividade. Este é o paralogismo paradoxal perpétuo e autogerado que o movimento traz para ambos sistemas de poder, liberal e neoliberal: é a principal ferramenta para perfurar a disciplina e controlar a carne, mas é também o único meio possível para quebrar a disciplina, para iniciar o próprio desmonte do controle.
15. Quem se move, quando se move, como se move, para onde se move. Assim como Frantz Fanon descobriu que ser um flâneur em uma cidade francesa no século XX era uma proibição cinética absoluta para um homem negro, todos os motoristas negros nos Estados Unidos hoje sabem que a identificação da modernidade com o sujeito “automóvel” é uma promessa cotidiana e letal negada àqueles que “dirigem enquanto negros”. Ou, a propósito, àqueles que correm enquanto negros. Ou que caminham enquanto negros. Que apenas vivem enquanto negros. O contrário também é verdadeiro: toda pessoa negra nos EUA e no Brasil (e na Europa, e nas colônias alargadas do planeta…) sabe que não se mover também não é uma opção.
16. Presos entre mover e não-mover, tendo sido disponibilizados e isolados, a tarefa que se apresenta é uma dupla recusa: a recusa das condições derivadas de forças externas ou transcendentes que condicionam o movimento e a recusa da inserção de impulsos cinéticos no nível da carne e do desejo. A tarefa é recusar a primeira “lei universal” de Newton, recusar um mundo onde corpos são considerados inertes até que uma força externa (seja um anúncio direcionado, um tweet presidencial ou um golpe nas entranhas dado por um cassetete da polícia) os leve a se movimentar pelos circuitos adequados de movimento. A tarefa é recusar o condicionamento reflexivo da cinética automática e neoliberal do interesse-próprio, inserida 24 horas por dia, 7 dias por semana, diretamente em nossos sistemas nervosos. A tarefa passa a ser encontrar outra física para o movimento; encontrar, na pausa, as fontes para um movimento coletivo não-condicionado e imanente. Um movimento no qual a quietude é simultaneamente recusa, potencialidade e ação. Uma outra coreopolítica, um anticoreopoliciamento, onde a escolha entre se mover e não se mover se torna secundária, terciária, irrelevante. Um movimento que sabe desde dentro que, na não-lei não-universal da microfísica da “pequena dança”, o movimento se funde com a imanência como a intensidade total da sociabilidade contatual. Um movimento lento que movimenta a fugitividade e efetua a amplificação da mobilização social contatual.
17. Este o conhecimento gerado nesta (não)paragem coletiva: contato não é apenas o que acontece quando pele toca pele. Contato, e particularmente o contato da sociabilidade coletiva, deriva do engajamento mútuo na formação de um campo mais sensual e mais intenso. Um campo de força de ação comum proximal, ativado através de uma prolongada posição de paragem a curta distância.
18. Em uma entrevista ao The New Yorker, publicada em 3 de junho, Opal Tometi, uma das co-fundadoras do Black Lives Matter (BLM), declarou:
Minha opinião sobre esses protestos é que eles são diferentes porque são marcados por um período que tem sido profundamente pessoal para milhões de americanos e residentes dos Estados Unidos, e isso os torna mais receptivos ou sensíveis ao que está acontecendo. Pessoas que normalmente estariam no trabalho agora têm tempo para ir a um protesto ou uma manifestação, e têm tempo para pensar sobre porquê elas têm sofrido tanto, e elas estão pensando: “Isso realmente não está certo e eu quero fazer tempo, tenho a capacidade de fazer tempo agora e fazer com que as minhas preocupações sejam ouvidas”. Portanto, penso que é significativamente diferente em termos do volume de demandas que estamos ouvindo.
Tornar-se receptivo, tornar-se sensível ao que está acontecendo, ao que tem acontecido, movendo a necropolítica das Américas como resultado da pequena dança precipitada pela pandemia, é o novo movimento da coreopolítica imanente que emerge de dentro de sua própria dinâmica desacelerada, de sua própria física não newtoniana, do que Michelle Wright chamou de “a física da negritude”. Um movimento e uma força política que inundam as ruas pelo movimento contatual da sociabilidade improvisada, desmantelando os velhos contratos ilegítimos da gestão cinética liberal e neoliberal de sujeitos adequadamente constituídos e suas contrapartes abjetas. É como se a pausa fosse a condição necessária, o catalisador lento para o que Brian Meeks recentemente descreveu como a “maré alta ” de protestos antirracistas, antipolícia e anti-anti-vidas-negras nos EUA. Na sociabilidade contatual, os ativistas do BLM manifestam que as ruas são o lar sem fronteiras daqueles que sempre se movimentaram sem permissão.
19. Como Tina Campt formulou recentemente em uma palestra na Nottingham Contemporary, a relação entre a lentidão provocada pela pandemia, a quarentena e a mobilização em massa após o assassinato de George Floyd não deve ser descartada: “a pandemia realmente nos forçou a desacelerar, mas a desaceleração intensificou a luta, ampliou uma prática lenta de testemunhar e uma prática íntima de cuidado. Cuidado suficiente para escutar aqueles que perdemos”. Há aqui a proposta de uma cinética dos cuidados, imanente à luta política anti-anti-negra.
20. O que mais descobrimos sobre a mobilização política e as micro-percepções políticas ao permanecermos na pequena dança do confinamento? Com certeza, realmente vimos como o capital e o fascismo surtam com a possibilidade de qualquer desaceleração de seu cineticismo frenético. É por isso que promovem caravanas estridentes de automóveis soando suas buzinas e agitando bandeiras brasileiras nas ruas do Rio de Janeiro, de São Paulo, de Brasília, de Fortaleza. É por isso que constantemente exigem o retorno imediato à circulação frenética dos objetos e dos sujeitos do mercado, mesmo que isso signifique algumas dezenas de milhares de mortes a mais. É por isso que os apoiadores de Trump precisam exigir, gritando sem máscaras pelas ruas, um retorno imediato do movimento de todos-para-o-capital, apesar das mais de 125.000 mortes em quatro meses, e a contagem não para. É por isso que constantemente criam e promovem indignação, de modo a induzir um estado permanente de reação impulsiva imediata à agitação permanentemente criada. O contato cuidadoso é o que o fascismo neoliberal não suporta.
21. De volta ao Brasil – onde a necropolítica do Estado suicidário só fez aumentar desde o diagnóstico de Safatle, no início de abril. No início de junho, vários ministros foram gravados discutindo, em uma reunião do gabinete presidencial com Bolsonaro, como a pandemia lhes ofereceu uma oportunidade de ouro para cometer ecocídios e genocídios mais rápidos e muito mais eficientes. Enquanto isso, contra-movimentos de resistência aconteceram graças à proliferação de práticas de cuidado de base comunitária, assentadas exatamente no imperativo de escutar aqueles que perdemos, como Tina Campt evocou. Lembro aqui de um diálogo entre o diretor de teatro Marcio Abreu e a poeta e pesquisadora de estudos afro-brasileiros Leda Martins, um mês após o início do confinamento nas cidades do Rio de Janeiro e de Belo Horizonte, respectivamente. Participando de uma iniciativa semanal do Núcleo Experimental de Performance da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que convida intelectuais, artistas, acadêmicos, curadores, ativistas e mestres de saberes tradicionais a estabelecerem diálogos transmitidos ao vivo em seu canal do YouTube, apoiando os hospitais da UFRJ em todo o Brasil (a maior rede pública de hospitais do Brasil opera nas Universidades Federais), Martins mencionou como a pandemia criou uma frente unida de sensibilização e consciência política e ética no Brasil, uma cadeia de solidariedade protagonizada por aqueles que haviam sido abandonados pela necrofilia neoliberal do governo federal. Martins nos lembrou que o trabalho do luto por aqueles que morreram, por aqueles que ainda estão morrendo e por aqueles que morrerão é essencial. Mas ela também nos convocou a pensar em todas as outras mortes do planeta, que ocorreram antes, que estão ocorrendo agora e que ocorrerão após o término da pandemia, graças a outro planejamento deliberado do necropoder neoliberal: os assassinatos (pela bala ou pela fome) de pessoas trans, de mulheres, de crianças, de populações indígenas, de refugiados políticos, de refugiados do clima, de espécies inteiras… Leda Martins, com palavras que evocam as de Tina Campt, nos lembrou que também devemos tomar este momento para escutar todas essas vozes e agir. Nos posicionando na pausa, podemos encontrar o movimento necessário para tal intensificação ética. Podemos estender o movimento de todas essas vidas já mortas e continuar sua luta.
22. Na pausa, o que atravessa a linha do meridiano de violência que sutura as Américas é a intensificação da luta como movimento.
—Rio de Janeiro, 21-28 de junho de 2020
Traduzido por Ana Luiza Braga
André Lepecki é Professor Titular da New York University, onde coordena o Departamento de Estudos da Performance. Doutor pela NYU, é autor de vários livros sobre teoria da dança e da performance, incluindo Exhausting Dance: Performance and the Politics of Movement (2006), traduzido em 13 línguas e publicado em português por AnnaBlume Editora; e mais recentemente de Singularities: Dance in the Age of Performance (2016). Como curador independente criou projetos para a Hayward Gallery, Londres; Haus der Kulturen der Welt, Berlin; Haus der Kunst, Munique; Bienal de Sydney, 2016; Museum of Modern Art – Warsaw; MoMA-PS1, entre outras instituições na Europa, no Brasil e nos EUA. Em 2008, foi premiado pela Associação Internacional de Críticos de Arte (AICA-EUA) por “Best Performance”. Desde 2003, colabora com Eleonora Fabião em algumas de suas ações e performances.
Ana Luiza Braga é artista, educadora e tradutora. É mestranda do Núcleo de Subjetividade em Psicologia Clínica da PUCSP e foi bolsista do Programa de Estudios Independientes do Museu d’Art Contemporani de Barcelona. Coordena as atividades pedagógicas do Instituto Caaeté, co-edita a plataforma de exercícios poéticos de arquivo Lingoa Geral e é autora de “Nem depois” (7 Letras, 2019) e coautora de “Eróticas escriturales: experiencias sensibles para la disidencia pedagógica” (Ediciones La Escocesa, 2018).