Fotografia na era de distanciamento social

Fotografia depende da distância, mas o distanciamento social não se presta à fotografia.

Nos últimos dois meses e meio de quarentena, eu tenho tirado fotos, é claro. É como eu passo o meu dia, como dou sentido às coisas. É o que eu compartilho com a família no Whatsapp e no Iphoto, com os amigos no Instagram e no Facebook. Porém minhas fotos não têm realmente me ajudado a dar sentido a este momento e, na verdade, nem as fotos tiradas e publicadas pelos outros em todo o mundo. Pode ser que esteja muito cedo para pensar sobre como a pandemia será lembrada e memorizada, mas atrevo-me a dizer que, além da impressionante explosão da imagem do próprio coronavírus vista através de um microscópio eletrônico, ainda não emergiu nenhuma fotografia potencialmente icônica dessa pandemia. 

De fato, entre o afastamento obrigatório pela saúde pública e a capacidade de expor, microscopicamente, o “inimigo invisível” no interior de nossos corpos, os produtores-de-imagem têm lutado para encontrar a distância intermediária que possa testemunhar as escalas global e íntima desse evento.

Ordens de cancelamento, isolamento, distância, quarentena, fique em casa. Esses são obstáculos no meio do caminho das imagens fotográficas que podem ter sucesso de enquadramento da pandemia e seus efeitos sociais e políticos, de maneira que nos ajudem no enfrentamento de um amplo processo de sofrimento público sem precedentes, tanto nos iluminando quanto nos mobilizando. Eventos, rituais, reuniões de grupos que se prestem à ocasião da fotografia foram cancelados. Casamentos, bar mitzvahs, até mesmo funerais estão limitados a um núcleo familiar íntimo, assistidos pelos outros via Zoom. Aniversários e celebrações de formatura tornaram-se reuniões de Zoom complementadas por comitivas comemorativas de carro feitas por vizinhos em cidades pequenas.

O editorial de Sarah Lewis no New York Times, publicado no início de Maio de 2020 e comoventemente intituladoWhere Are the Photos of People Dying of Covid? [Onde estão as fotos das pessoas morrendo de Covid?] belamente articula o que nós esperamos da fotografia nos momentos de crise e o que, na opinião dela, nós não estamos fazendo. Nós não estamos vendo ou não estamos possibilitados de ver, o sofrimento humano, argumenta Lewis; nós não vemos a morte. Pessoas estão reduzidas a números estatísticos. Evocando imagens icônicas de crises anteriores que resultaram em protesto massivo e mudança política – AIDS, a catástrofe da água em Flint, Michigan, as fotografias das vítimas da Guerra Civil de Matthew Brady e as imagens da pobreza durante a Grande Recessão registradas pela Administração da Segurança Agrícola, entre outras – o artigo supõe que fotografias podem proporcionar um conhecimento visceral que incita ação e resposta. “Sem essas fotos”, Lewis conclui, “é mais difícil combater o vírus”. Somente através da visualização de um evento como esse é que se pode “penetrar nossos corações, assim como as nossas mentes”. Mas essas suposições sobre o poder mobilizador da visão e o papel mediador da fotografia ainda são válidas na ausência de sua distância intermediária?

Há, é claro, muitos projetos fotográficos e inúmeras fotos circulando. Estamos no final de maio e no nordeste dos Estados Unidos a primavera está avançando. Há um alívio em fotografar árvores frutíferas florescendo, lilás e magnólias, flores de cerejeira muito esperadas, ou, como no meu próprio caso, no final da primavera, em New England, campos de dente-de-leão amarelo. Em cidades e vilas, é difícil resistir de fotografar os fechamentos — de lojas, teatros, museus e escolas, algumas com placas improvisadas de “SENTIMOS SUA FALTA”. Em todos os lugares, encontramos imagens feitas por drones de ruas e praças vazias, vistas amplas de shoppings e aeroportos, focos de rostos mascarados impenetráveis. “Você pode ver que eu estou sorrindo?” tornou-se um meme. Todas essas imagens continuam produzindo incredulidade. E, então, as reaberturas igualmente chocantes, mostrando pessoas sem máscaras, muito próximas, em praias ou em parques, provocando ansiedade e medo.

Mas Lewis está procurando algo a mais, algo que diga mais sobre o sofrimento atual. Em resposta, Reading the Pictures recentemente republicou várias imagens dos últimos dois meses mostrando que Here are the Pictures of People Dying of Covid” [Aqui estão as fotos de pessoas morrendo de Covid]. Como podemos explicar essa divergência? Talvez ambos editoriais estão certos: talvez há muitas imagens, imagens de produtores que tentam negociar distância e proximidade, e talvez os produtores, de alguma forma, ainda não conseguem fazer o que precisamos ou o que desejaríamos que eles fizessem.

O que os vários projetos de imagem relacionados ao Covid estão perguntando aos seus visualizadores? Como eles nos comovem, deslocam e mobilizam; como eles nos ajudam a entender e testemunhar?

Apesar dos riscos de furar a bolha obrigatória de proteção, alguns fotógrafos e fotógrafas têm conseguido produzir abrasadores projetos tão perto quanto possível do ponto estratégico neste momento de agora. Nós realmente vemos imagens de doentes e moribundos/as cuidados/as por enfermeiros/as e médicos/as cobertos/as de equipamentos de proteção. Fotógrafos e fotógrafas trabalhando como socorristas de emergência, como Andrew Renneisen, ou profissionais médicos, como Karen Cunningham, que por si mesmos estão tirando fotos de testemunho. Trabalhando para o New York Times, Philip Montgomery, quem fotografou de dentro uma funerária do Bronx e dois hospitais de Nova York por mais de dois meses, também documentou o efeito doloroso que esse trabalho teve sobre ele.

John Moore ainda chega perto de nos dar frestas íntimas da extraordinária história de parir com Covid-19, e os cuidados de um professor com o recém-nascido até a recuperação de seus pais. Seguidores dão atualizações diárias desse drama e eu posso quase sentir o suspiro coletivo entre nós quando a bebê Neysel está reunida, agarrada e abraçada com sua mãe Zully. Durante o distanciamento social, em um momento quando as telas de nossos telefones, tablets e computadores proporcionam nossos únicos espaços de interação social, eu me sinto grata de ser incluída nesse abraço virtual.

Imagens das valas comuns em Hart Island, em Nova York, e outras valas comuns, contudo, são tiradas por drones remotos. E, de uma distância segura, vemos longas filas nos centros de desempregados e de distribuição de alimentos, bem como imagens de protestos de enfermeiros/as e trabalhadores/as exigindo salários de periculosidade e equipamentos de proteção. Eles/as seguram cartazes, pedindo-nos solidariedade, a distância.

Proibidos de viajar para locais de interesse público, ou mesmo para deixar seus espaços de quarentena, muitas fotógrafas e fotógrafos tiveram que encontrar formas criativas de fazer a ponte entre aqueles/as que têm a possibilidade de se isolar e aqueles/as trabalhadores/as essenciais que permitem o isolamento. Haruka Sakaguchi inicia seu diário de quarentena desde a chão e fora da culpa de seu privilégio. Deb Willis, conhecida por suas fortes imagens da vida e da beleza negra, tem preenchido seu Instagram de belas fotos dos arranha céus de Nova York tiradas de sua janela. Da mesma forma, o fotógrafo argentino Julio Pantoja observa uma rígida quarentena ao tirar fotos da janela.  Em quarentena, o fotógrafo de conflitos Paolo Pellegrin encontrou um novo tema ao fotografar sua família pela primeira vez. As 400 membros da colaboração internacional Women Photograph criaram um diário comunitário no Instagram compartilhando experiências pessoais durante a pandemia.

Na busca pela distância intermediária, o limiar entre produtores/as, curadores/as e diretores/as de imagem tornou-se borrado e a tecnologia de mediação entrou no quadro. Nós vemos telas dentro de telas. Em colaboração com The Nation, The Magnum Foundation está patrocinando uma série semanal sobre  “The Invisible Frontline”  [A linha de frente invisível], cobrindo temas como profissionais da rede alimentícia, profissionais de saúde, vida parental durante a pandemia e a sina de profissionais do sexo em Porto Rico. O objetivo, precisamente, é tornar o invisível visível. Os ensaios fotográficos resultantes são comoventes e pessoais, oferecendo acuradas coleções de autorretrato de familiares e crianças, e de trabalhadores do sexo fazendo fotos ou vídeos a partir de seus laptops ou celulares para disseminá-los a clientes pagantes. The Invisible Frontline nos permite acessar vislumbres de como algumas populações vulneráveis enfrentam a pandemia, utilizando selfies, Facetime e Zoom como estratégia de colaboração desses grupos no processo de construção da série. Semelhantemente, o artista britânico Heather Glazzard aparece em uma pequena praça nos retratos de Facetime que faz em colaboração com cada sujeito de sua comunidade queer na Grã-Bretanha. Em contraste, a fotógrafa estadunidense  Annie Tritt, em missão pelo New York Times, meticulosamente encena e dirige retratos de sujeitos via Zoom, mas permanece fora do quadro.

Não são imagens pontuais e icônicas, mas ensaios fotográficos em desenvolvimento, incluindo vozes e histórias. São produtos de uma interação – quase uma forma de toque – entre produtor de imagens, sujeito e espectador. Em um mundo em que só podemos abraçar ou tocar membros de nossa própria casa e enquanto tecnologias sofisticadas estão sendo desenvolvidas para produzir uma forma de sociabilidade sem toque, os insights oferecidos pela fotografia não podem se limitar a uma visualidade distante. Para comover um público amplo, eles precisam invocar vários sentidos e satisfazer múltiplas necessidades.

A visualidade é háptica, corporificada, material; fotografias ressoam em timbre, frequência e som. Elas provocam cheiro e toque. Elas podem nos deslocar afetivamente, visceralmente. Mas que qualidades elas precisam ter para nos provocar a agir coletivamente?

Imagens das ruas, restaurantes e museus vazios de Nova York são surpreendentes; como numa apresentação de slides acompanhada de Frank Sinatra cantando New York, New York, no curta-metragem de Spike Lee, elas me levam a derramar lágrimas de perda e saudade. Imagens similares de cidades pelo mundo ganham poder emocional num vídeo de YouTube em que Andrea Bocelli canta Amazing Grace numa praça vazia em frente a Catedral de Milão. Em cada um desses casos, as imagens são múltiplas, deslocam, participam de narrativas multissensoriais geradas de forma colaborativa de visão, som e toque.

Fotografias singulares em si ainda podem e, de fato, produzem tais respostas viscerais, certamente. Como acadêmicos de estudos visuais têm discutido, a visualidade é háptica, corporificada, material; fotografias ressoam em timbre, frequência e som. Elas provocam cheiro e toque. Elas podem nos deslocar afetivamente, visceralmente. Mas que qualidades elas precisam ter para nos provocar a agir coletivamente? Essa é uma questão que tem enfrentado as fotografias de desastre desde os primórdios das mídias. Na ausência de uma distância intermediária necessária que possa atrair uma ampla gama de visualizadores da imagem como participantes e co-testemunhas dos eventos, essa questão tornou-se ainda mais notável e mais urgente.

Há mais de 20 anos, Lorie Novak vem coletando, estudando e categorizando as imagens exibidas na primeira página do New York Times em um projeto que ela chama de “Above the Fold” [Por Cima da Dobra]. Muitas vezes, ela diz, fotos, especialmente fotos traumáticas, “ficam sob minha pele”. Ela transmite essa enérgica resposta incorporando essas fotos em imagens singulares, dípticos ou trípticos que apresentam seus próprios olhos e rosto, usando óculos ou não. Em alguns vídeos seus olhos piscam. Parte de um projeto maior que ela chama de “Photographic Interference” [Interferência Fotográfica], essas obras nos convidam a olhar para as imagens da mídia com e através de seu corpo, elucidando assim como as imagens moldam as formas que olhamos, como elas interferem em nossas vidas diárias, o que, de fato, elas fazem conosco, não como testemunhos dos eventos em si, mas como fazem as fotografias dos eventos, ou as fotos como eventos.

Não surpreende que, de meados de março até o final de maio, a maioria das fotos de Above the Fold tenham tratado do Coronavirus. Novak continuou a coletar e mediar algumas dessas fotos com seus olhos e óculos. Fazendo isso, acredito, ela traz as imagens para perto, em uma distância intermediária, reenquadrando nosso campo de visão dentro do campo de visão dela, nos envolvendo em um espaço íntimo e compartilhado de olhar. Ela faz isso com seu rosto aberto e desmascarado, seu eu muito interior, vulnerável aos eventos que são enxertados em sua pele, ou que “ficam debaixo” dela. E essa pele, a pele da imagem, nossa tela, torna-se um espaço onde podemos nos permitir ser tocados.

24 de maio de 2020, o Memorial Day, foi o dia quando os mortos de Covid-19 nos EUA se aproximou a 100.000 e o New York Times procurou uma forma demonstrar a magnitude da perda para seus leitores. Os editores chegaram a considerar encher a primeira página com uma grade de retratos dos mortos. Em vez disso, pensaram que seria mais poderoso listar, tantos nomes, idades e cidades de origem e frases específicas descritivas de cada pessoa extraídas dos obituários locais, quantos coubessem nas várias páginas do jornal. Sem imagens, sem dobras, sem molduras.

Novak criou duas imagens para emoldurar essa devastação para seus observadores, uma com óculos e outra sem. Como ela, eu primeiramente usei meus óculos e li os nomes, me impressionei com as idades, tentei imaginar a vida, passei para o próximo. Aí, tirei meus óculos para chorar. Enquanto os olhos de Novak olham para mim diretamente ou através de seus óculos, não obstante, eles exigem ainda mais. Eles me provocam a ler mais, a olhar e ver, a imaginar como, neste momento de isolamento, eu posso me juntar a outros para agir.

Claro, todos nós precisamos ver tantas imagens quanto somos capazes de ver. No entanto, acredito que a proposição de Novak é do tipo de projeto fotográfico que é especialmente útil neste momento. Não como um projeto que nos mostra mais ou diferentes tipos de cenas, mas aquele que nos permita sentir o que já estamos vendo.

—Norwich, Vermont, Final de maio de 2020

Nos últimos dias, outro conjunto de imagens tomou o nosso campo de visão. Por todos os Estados Unidos e em inúmeros lugares do mundo, manifestantes estão se arriscando à infecção para protestar contra recentes incidentes de violência racial pela polícia. Um vídeo viral do brutal assassinato de George Floyd pelo oficial de polícia, em Minneapolis, com outros policiais assistindo, desencadeou essa ação em massa contínua. Precedida dos assassinatos de Breonna Taylor, em Kentucky, e de Ahmaud Arbery, em Georgia, e no momento quando comunidades de cor têm sofrido perdas massivamente desproporcionais na pandemia, esse último episódio violento provou-se intolerável.

Protestos e, especialmente, detenções impossibilitam a manutenção da distância social. Jornalistas estão reportando no chão e em tempo real, e fotógrafos têm sido capazes de produzir disparos poderosos. Imagens de celulares postadas nas redes sociais movimentam multidões cada vez maiores para se juntarem a marchas pacíficas. Protestos se tornam violentos à medida que a noite desce. Uma imagem de um homem carregando uma bandeira de cabeça para baixo e andando em frente a um prédio em chamas quase imediatamente emerge como icônica.

Nós já vimos esses vídeos e essas imagens antes. Nós sabemos como elas se parecem. Cada vez que elas estão queimando e elas conseguem nos mobilizar.  

Entretanto, a pandemia segue ainda feroz e nós ainda não sabemos como mediar sua visualidade.*

—Norwich, Vermont, 1º de Junho de 2020

*Com meus agradecimentos a Susan Meiselas, Lorie Novak, Leo Spitzer, Diana Taylor e Laura Wexler por suas valiosas sugestões. 

Traduzido por Sérgio Andrade


Marianne Hirsch leciona na Columbia University, em Nova York. Seus livros mais recentes são The Generation of Postmemory: Writing and Visual Culture After the Holocaust  [A geração de pós-memória: escrita e cultura visual após o holocausto] (2012), School Photos in Liquid Time: Reframing Difference [Fotos escolares em tempo líquido: re-enquadrando diferença] (2020), em coautoria com Leo Spitzer, e os volumes coeditados de Women Mobilizing Memory [Mulheres mobilizando memórias] (2019) e Imagining Everyday Life: Encounters With Vernacular Photography [Imaginando a vida cotidiana: encontros com a fotografia vernacular] (2020).

Sérgio Andrade é artista e Professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), vinculado ao Departamento de Arte Corporal e ao Programa de Pós-Graduação em Dança. Coordenador do Laboratório de Crítica / UFRJ. Co-organizou a publicação Performar Debates (2017). Atualmente, é visiting scholar no Instituto Hemisférico (2020-2021), trabalhando no seu projeto de pós-doutorado e livro Tele(contra)coreografias.