escrevemos como acadêmicas e ativistas de deficiência de Nova York, vivendo no epicentro da pandemia global Covid-19, profundamente conscientes de como essa crise expôs as falhas do nosso sistema de saúde estratificado, especialmente ao longo das divisões de raça, classe, idade e deficiência. Em resposta, artistas e ativistas deficientes convocaram seus conhecimentos—e sua perseverança—em projetos que colocam em primeiro plano a deficiência entre a bioética e as artes. Abordamos essas duas áreas neste relato a partir da linha de frente da deficiência, onde reivindicações poderosas sobre justiça, formas de convívio e projetos de acesso remoto, assim como possibilidades futuras, são todos emergentes.
Primeiro consideramos as questões levantadas pela bioética da deficiência. Como testemunhamos agora, quando equipamentos cruciais estão escassos, o racionamento de apoio médico — antes impensável — torna-se realidade, mobilizando ativistas deficientes que protestam contra o ressurgimento de lógicas neo-eugênicas. Rosemarie Garland Thomson, pesquisadora, ativista e bioeticista recentemente questionou esta situação gritante não apenas para o que está ocorrendo no presente, mas para como as escolhas atuais feitas na pandemia inevitavelmente moldarão o que vem a seguir.
Quem pode viver e morrer? Quem é selecionado contra e quem é selecionado em termos de distribuição de recursos que moldarão a comunidade em que vivemos juntos após essa pandemia passar? E algum dia passará. Acho que seria moralmente tolo não reconhecer que a comunidade que compartilhamos após a pandemia será moldada pelas decisões que tomamos agora. E queremos olhar para isso de uma perspectiva moral e de justiça e não pensar que vamos apenas cuidar disso quando tudo acabar.
Suas palavras são exemplares de como ativistas deficientes estão usando suas plataformas locais e nacionais para expressar sua raiva e determinação no meio desta pandemia. Este movimento não é novo, mas está encontrando maneiras novas e poderosas de ser ouvido, desafiando o “preconceito lógico”. Nunca o slogan fundamental do movimento dos direitos das pessoas com deficiência, “Nada sobre nós, sem nós” foi mais acertado e urgente. Com a proliferação de webinários, conferências (e festas) Zoom, podcasts e mídias sociais, ativistas têm compartilhado suas engenhosidades e descobertas—conquistadas com anos de trabalho e empenho—para nos lembrar quem conta e quem decide a quem contar nesta pandemia. Como dados sobre os impactos do coronavírus nos Estados Unidos revelam taxas de mortalidade desproporcionalmente altas para pessoas negras, movimentos de pessoas com deficiência como #CripTheVote têm respondido com fóruns públicos sobre disparidades de saúde raciais e de classe; o Projeto de Visibilidade da Deficiência tem centrado a atenção no trabalho de deficientes negros. Após a morte de George Floyd, essas conversas se amplificaram em protestos contra a polícia e outras formas de violência estatal contra pessoas de cor. Ativistas da Black Disabled Lives Matter têm organizado comícios e campanhas de hashtags que insistem no profundo emaranhado de racismo, ableísmo e violência na sociedade americana.
Na ausência de equidade médica e jurídica, artistas e ativistas deficientes responderam à primeira onda da crise do Covid-19 não apenas com maior defesa e visibilidade da mídia, mas com a reinvenção da esfera pública por vir. Eles oferecem outros modelos de resiliência e inovação – reajustes técnicos, apoio mútuo, imaginação e criação de novos mundos, ativismo interseccional – que são as lições de vida de viver com corpos-mentes não normativos.
“Viver de outra forma” há muito caracterizou a criatividade cotidiana que a deficiência exige, seja na encenação do cotidiano ou no palco. Considere, por exemplo, o premiado apelo da bailarina e coreógrafa Alice Sheppard à criatividade e colaboração com a companhia de dança Kinetic Light, #QuarantineShorts [#CurtasDeQuarentena]. Em 21 de abril, ela estendeu a mão para uma ampla comunidade online de colegas artistas, ativistas e aliados deficientes, pedindo a todos nós para nos juntarmos a ela nesta nova empreitada.
Sabemos que muitos dos nossos entes queridos deficientes foram severamente afetados pela crise, e estamos preocupados com a forma como o futuro das pessoas com deficiência está tão em risco. Também sabemos que muitos de vocês já têm profundo conhecimento das práticas que chamamos de “refugiar-se em casa” e distanciamento social; sabemos que você já sabe sobre a falta de acesso ao espaço público e recursos. A equipe da Kinect Light sempre foi dispersada pela geografia, como estamos agora. Nos conectamos via vídeo, continuamos nosso trabalho e ansiamos por estarmos juntos pessoalmente.
Alice Sheppard
Enquanto as atividades presenciais são canceladas, conseguimos criar e brincar um pouco, remotamente, com o que chamamos de #QuarantineShorts. Vimos criações em cozinhas, banheiros e fora. Chegaram respostas de Nova York, Califórnia, Reino Unido, Vancouver, França e além. Nós amamos todos elas. Este projeto é aberto a todos os artistas e criativos. Assista às contribuições #QuarantineShorts via Facebook ou Instagram. Responda aos pontos de partida sugeridos ou crie o seu próprio. Marque sua criação #QuarantineShorts #CreateConnectKL #KineticLight e compartilharemos!
Introdução ao Curtas de Quarentena, Acesso em 10 de maio, 2020.
Os Curtas de Quarentena conjuram uma conversa remota, mas incorporada, entre dançarinos e artistas deficientes; uma pessoa oferece um prompt, como a palavra ampliar, e outras respondem com movimento. A série oferece vislumbres da vida negra com deficiência sob quarentena, do mundano ao sedutor ao surreal. Um curta, com apenas 24 segundos de duração, mostra o dançarino Jerron Herman deitado de lado na cama, olhando diretamente e intimamente para a câmera, e dizendo ao espectador na narração (legendada) ” Um cobertor marrom confortável levanta-se no ar acima de um rosto castanho de pele.” Em um dos curtas de Sheppard, ela dança em sua cadeira de rodas no torto de um carvalho gigante, em uma quarentena ao ar livre com vento e canto de pássaro.
Outros projetos coletivos reuniram as pessoas on-line de forma sincronizada, ampliando as tradições das festas centradas na deficiência. Quando Aimi Hamraie, do Critical Design Lab, e o DJ Who Girl (Kevin Gotkin) lançaram “Remote Access”, em 22 de março, eles lembraram aos convidados que “pessoas com deficiência têm usado o acesso remoto há muito tempo como um método para organizar prazer e amizade. Convocamos nossa comunidade para uma tarde e noite de ativismo de prazer através da práxis e #CripRitual da vida noturna crip [com deficiência].” O guia de participação para a festa tomou como dado que o Zoom não é uma plataforma ideal; “As coisas não vão funcionar perfeitamente.” Assim, algumas pessoas se ofereceram para ser doulas—para solucionar problemas e acompanhar — ao lado de legendas, sons e áudio descrição de vídeos. As pessoas entravam e saíam da festa, dançavam, experimentavam roupas, deitavam na cama, mantinham o vídeo desligado, conversavam, estavam sozinhas na câmera ou não. Em 2 de junho, o Critical Design Lab divulgou outra forma de guia de solidariedade, oferecendo uma declaração sobre “compromissos de design para abolir a supremacia branca”, composta por oito medidas para reconhecer o preconceito racializado e direcionar a “construção mundial de deficientes” para “novas infra-estruturas e modos de vida”.
Outros projetos oferecem intervenções práticas imediatas. Noventa e cinco por cento dos artistas perderam grande parte de sua renda como resultado da pandemia, e artistas com deficiência — já pouco presentes ou totalmente excluídos do mercado de arte dominante — estão particularmente em risco. Mesmo antes do fechamento da cidade de Nova York, um grupo de artistas com deficiência e doenças crônicas organizou o Fundo Crip em 9 de março para arrecadar fundos e distribuir alimentos, medicamentos e outros auxílios para “pessoas imunocomprometidas e deficientes que precisam de cuidados em casa”, observando que “pessoas QTBIPoC [em inglês, Queer/Trans/Pretas/Indígenas/Não-Brancos] serão priorizadas”. Sua meta inicial era 20.000 dólares e as pessoas doaram quase o triplo. O Fundo Crip ficou no GoFundMe por apenas um mês; em uma reviravolta irônica da plataforma, quando a campanha terminou, o alerta apareceu na página: “O organizador desativou [em inglês, “disabled”, que também significa deficiente] novas doações para esta campanha”. Embora o apoio mútuo tenha se tornado um dos chavões da pandemia, a brevidade intencional do Fundo Crip nos lembra que não é suficiente: as instituições públicas não devem desistir da responsabilidade de cuidar de seus cidadãos e empregados, e não devemos permitir a erosão contínua do seguro social neste país. A ratificação da Lei de Seguridade Social em 1935 introduziu os Estados Unidos (relutantemente) à era “moderna” de seguro para desempregados, idosos e deficientes — em meio a uma Grande Depressão que deixou um em cada três residentes de nossa própria cidade desempregados, enquanto “Hoovervilles” apareceu de barracos improvisados no Central Park,nas margens dos rios e na área da Universidade de Nova York. Questões de endividamento e precariedade financeira muitas vezes surgem no trabalho de artistas que organizaram o Fundo Crip; Xs artistas também nos pedem para cuidar do que não tem preço.
A Outside Voices deseja que você saiba o seguinte: Somos sobre advocacia, empoderamento, pensamento fora da caixa e orgulho da deficiência. Escolhemos nosso nome porque acreditamos que vozes do EXTERIOR merecem ser ouvidas. Acreditamos no acesso. Não usaremos nossas vozes silenciosas e internas para chamar sua atenção.
As atividades presenciais da OV—escrita de poesia que depois é transformada em roteiros para vídeos e performances ao vivo (às vezes, pagas), rapidamente se tornaram um sistema de apoio on-line à medida que os membros eram fisicamente separados um do outro pela Covid. Os mais de vinte membros regulares da OV são bastante diversos; alguns vivem em casas congregadas, outros dividem um apartamento com supervisão, outros ainda vivem em casa como filhos adultos de pais idosos. Quando o vírus surgiu, os membros se preocupavam uns com os outros. Alguns tomaram a iniciativa de adicionar rapidamente mais amigos extraídos de outros programas em que eles como pessoas com documentos haviam se conhecido. O grupo online recebeu novos pares sob o exílio de Covid; notavelmente, está prosperando, respondendo a expressões individuais de angústia e medo, enviando textos, poemas, lembretes da valiosa adesão um do outro nesta comunidade em mutação em um momento perigoso. Os cuidadores que acompanham alguns membros de OV também se tornaram mais ativos no exame uns dos outros, conseguindo compartilhar aplicativos e suprimentos e contribuindo com seus poemas para leituras em grupo. Como um participante de longa data que não fala, usando seu quadro para escrever, observou, “minha incapacidade de falar chamada silêncio agora me deixa tão sozinho.” Um dilúvio de suporte chegou como textos telefônicos, já que este membro valioso não pode responder a chamadas telefônicas, a conexão primária que muitos outros estavam usando.
O apoio mútuo toma uma forma diferente em uma trupe de dança profissional integrada, Heidi Latsky Dance. Após o cancelamento repentino de apresentações e cachês, duas reuniões semanais agora servem como uma âncora que mantém os dançarinos unidxs. Uma vez por semana, a coreógrafa Heidi Latsky organiza uma sessão via Zoom da técnica de respiração e abordagem que desenvolveu para si mesma e seus dançarinos levando em conta diversos corpos. Esses exercícios de respiração coletiva ajudam o grupo a se abrir para novos vocabulários de coreografia e virtuosismo. Uma segunda sessão semanal reúne bailarinxs com os recursos: os encontros abrangem temas abstratos — quando/por que era ‘político’ nossa dança integrada? — até a prática: visitas com representantes da fundação que sugerem caminhos criativos para os recursos para as artes durante esse período de fechamento repentino e financeiramente catastrófico. Manter contato e coragem durante esses tempos devastadores é uma forma primária de mutualidade.
A contabilização da perícia por incapacidade – desde os esforços atuais de bioeticistas de deficiência até designers para deficientes e artistas até ativistas da Black Disabled Lives Matter – permite que todos aprendam como a interdependência e as reivindicações sobre a justiça podem fornecer modelos para práticas coletivas produzidas de baixo para cima durante esta prolongada crise. Especialistas em deficiência também previam a distribuição desigual de “alto risco”. Em um artigo recente sobre os riscos à saúde das instituições, desde asilos até prisões, Alice Wong afirma:
Os sistemas que existem agora não têm que permanecer os mesmos… Segurança é uma ilusão e privilégio para poucos… (Somos) uma infecção, crise médica ou mudança de política longe da institucionalização ou morte. Essa pandemia levantou o véu sobre que tipos de pessoas são consideradas “perdas aceitáveis” em nome de salvar a economia: negro, pardo,indígena, pobre, deficiente, mais velho, gordo, doente crônico e imunocomprometido apenas para citar alguns.
Como fundadoras do Centro de Estudos para Deficientes da NYU, somos continuamente lembrados da curva de alto aprendizado do presente, como entendemos repetidamente que a deficiência não é apenas uma maneira engenhosa de viver; trata-se de um conjunto contínuo de críticas às desigualdades endêmicas que estruturam a atual epidemia.
—New York City, 13 de maio (atualizado em 8 de junho), 2020
Traduzido por Ferdinando Martins.
Faye Ginsburg é David B. Kriser Professor de Antropologia na Universidade de Nova York, onde fundou e dirige o Centro de Mídia, Cultura e História, e co-fundou e co-dirige o Center for Disability Studies. Autor e editora de quatro livros e muitos artigos, ela está finalizando um livro com Rayna Rapp intitulado Disability Worlds: Personhood, Everyday Life and “the New Normal” in the 21st Century.
Mara Mills é Professora Associada de Mídia, Cultura e Comunicação na Universidade de Nova York, onde co-fundou e co-dirige o Centro de Estudos sobre Deficiências. É editora fundadora da revista Catalyst: Feminism, Theory, Technoscience. Mais recentemente, co-editou o Testing Hearing: The Making of Modern Aurality (em julho de 2020 da Oxford University Press) e, com Jonathan Sterne, é co-autor de um livro intitulado Tuning Time: Histories of Sound and Speed. Mais informações podem ser encontradas em seu site: maramills.org.
Rayna Rapp é professora de antropologia na Universidade de Nova York, co-fundadora do Center for Disability Studies e afiliada da Faculdade de Saúde Pública Global. Seus livros e artigos se concentraram na política de reprodução; gênero e medicina, estudos científicos e deficiência e cultura. Junto com Faye Ginsburg, ela está completando um livro intitulado Disability Worlds: Personhood, Everyday Life and “the New Normal” in the 21st Century.
Ferdinando Martins é professor de História e Teoria do Teatro e Estudos da Performance na Universidade de São Paulo, Brasil. Em 2019, foi professor visitante do Instituto Hemisférico de Performance e Política.