Rastros Humanos Sobre as Superfícies do Mundo

Se nós não sabíamos que compartilhávamos superfícies no mundo, agora sabemos. A superfície que uma pessoa toca carrega o rastro dessa pessoa, acolhe e transmite aquele rastro, e afeta a próxima pessoa cujo toque aí pousa. As superfícies divergem. O plástico não carregará o rastro por muito tempo, mas alguns materiais porosos, certamente, sim. Alguma coisa humana e viral permanece por pouco ou muito tempo numa superfície que constitui um componente material do nosso mundo comum.

Se nós não sabíamos antes quão importante os objetos são em vincular um ser humano a outro, provavelmente sabemos agora. A produção, a distribuição e o consumo de produtos agora carregam o risco de vetores de comunicação do vírus. Uma encomenda aterrissa na varanda e o rastro daquele outro que a deixou ali é invisível. Ao pegá-la e trazê-la para dentro, alguém faz contato com aquele rastro e uma grande variedade de outros que não se conhece. O(a) trabalhador(a) que a deixou lá também carrega os rastros daqueles(as) outros(as) que fabricaram e embalaram o objeto, aqueles(as) que manusearam a comida. O(a) trabalhador(a) é um locus especialmente denso de transmissão que assume o risco que aqueles(as) que comem comida delivery buscam evitar. Embora a inter-relação de todas essas pessoas não possa ser vista, sua invisibilidade não nega sua realidade. O objeto é uma forma social, quer dizer, uma forma constituída por um conjunto de relações sociais. Essa pode certamente ser uma verdade geral, mas ela assume uma nova importância sob as condições da pandemia: por que essa pessoa que entrega comida continua trabalhando apesar disso a expor ao vírus mais diretamente que aquela que recebe a comida pelo correio? Muitas vezes a escolha que eles(as) enfrentam é o risco de doença, possível morte, ou perda do emprego. A escolha brutal que um(a) trabalhador(a) tem de fazer está igualmente inserida no rastro humano comportado pelo objeto, um rasto de trabalho que agora potencialmente carrega o rastro do vírus. Um vírus que nunca pertence a nenhum corpo que o contrai. Não é uma possessão nem um predicado, mesmo que digamos “o fulano de tal tem o vírus”. Em vez disso, o vírus vem de alhures, agarra uma pessoa, transfere-se para uma superfície corporal ou para um orifício através do toque ou da respiração, toma o corpo como seu hospedeiro, se entocando ai, adentrando nas células e direcionando sua replicação, espalhando seus tentáculos letais apenas para se infiltrar no ar, se alastrar em novas superfícies e entrar em outras criaturas vivas. O vírus aterrissa, entra em um corpo delimitado e parte para aterrissar na pele de outro ou de um objeto, buscando um hospedeiro – a superfície de uma embalagem, o material poroso de um mundo compartilhado. Os objetos que delineiam nossas relações sociais são, às vezes, mercadorias, mas outras são gradeados, desembarcadouros e todos os planos táteis da vida arquitetônica, o assento de um avião, qualquer superfície que hospeda e carrega um rastro por mais de um momento passageiro. Nesse sentido, as superfícies do mundo nos conectam, ainda nos situam como igualmente vulneráveis ao que passa pelas infraestruturas materiais e se torna parte da superfície viva das coisas, e assim nos tornamos mais perigosamente suscetíveis ao que vive nos objetos que passam entre nós. Nós dependemos de objetos para viver, mas há também, às vezes, algo vivendo sobre o objeto ou um rastro vivo de outro vivente em sua forma e sobre sua superfície. A porosidade da superfície determina a longevidade e a atividade do vírus, e assim a vida do vírus é escorada pelas superfícies em que ele pode habitar. Obviamente, nós humanos dependemos de um mundo material para estabelecer equilíbrio e movimento, para fornecer o ar que nos mantém respirando e, subitamente, somos reduzidos aos rudimentos da vida, deliberando sobre cada etapa necessária para atender aos requisitos mais básicos. Na maioria das vezes, as pessoas parecem temer o contato próximo, a retransmissão aérea do vírus face a face. O encontro facial é, talvez, ainda mais fortemente temido que a contaminação através do objeto manuseado e atualmente parece que a retransmissão aérea é a forma preponderante da comunicação viral. Raramente temos o pleno controle sobre nossa proximidade com os outros no curso diário da vida: o mundo social é imprevisível dessa maneira. A proximidade involuntária a objetos e a outras pessoas é uma característica da vida pública e parece normal para qualquer um que use o transporte público ou precise se deslocar por uma rua em uma cidade densamente povoada: nós nos chocamos uns aos outros em espaços apertados, nos apoiamos no parapeito, tocamos no que estiver em nosso caminho. E, no entanto, essa condição de contato e encontro ao acaso, de se esfregar uns nos outros ou entre coisas dispersas, torna-se potencialmente fatal quando esse contato aumenta o potencial de enfermidade e essa enfermidade carrega o potencial da morte. Sob essas condições, os objetos e outros que necessitamos aparecem como as maiores potenciais ameaças às nossas vidas.

se questionamos a forma geral do rastro humano que a embalagem carrega, nós também estamos questionando as condições de vida e de morte sustentadas pela organização social do trabalho.

As condições da pandemia nos solicitam a reconsiderar como os objetos estruturam e sustentam nossas relações sociais, encapsulando tais relações de trabalho, mas também as condições de vida e de morte implicadas pelo trabalho, pelo movimento, pela sociabilidade e pelo refúgio. Certamente, em O Capital, Marx nos detalhou como o operário investe seu trabalho no objeto e como o valor dessa mão-de-obra se transforma em valor de troca no mundo socioeconômico estruturado pelo mercado. Marx buscou metáforas para descrever como o rastro do trabalho humano se deixa levar e ser refletido pelo objeto criado e como o valor de tal objeto, transformado em mercadoria, é determinado pelo que os consumidores estão dispostos a pagar, pelo que os donos dos lucros procuram obter e por tudo o que entra na noção de valor de mercado. O objeto foi “mistificado” e “fetichizado” precisamente porque ele corporificou um conjunto de relações sociais apenas de uma forma enigmática. Nós não conseguiríamos sustentar a mercadoria sob uma luz que elucidasse essas relações sociais com transparência: elas foram incrustradas ao objeto de uma maneira para que permanecessem misteriosas sem o tipo de análise que Marx nos municiou. Fomos convidados a entender o rastro de desaparecimento do trabalho humano na forma mercadoria junto com o animismo do objeto – esse que foi um de seus efeitos mistificantes. Qualquer trabalho corporificado no objeto foi praticamente eliminado pelo seu valor de troca resultante. Desde que o trabalho humano foi negado pela forma mercadoria, não obstante, ele sobreviveu como um rastro, invisível, não facilmente decifrável. Em outras palavras, esse foi o rastro que convidou o tipo de leitura crítica que Marx buscou propor. O fato das relações sociais estarem cristalizadas na forma objeto não significa que essas relações sociais, por via relacional, fossem boas ou justas. Dificilmente! De fato, sob as condições do capital elas foram entendidas como relações tanto de exploração como de alienação. E, no entanto, alguma insinuação da interdependência social é ainda comunicada através dessa mesma forma. Uma cadeia de trabalhadores, um sistema de trabalho, tudo participa da mercadoria de alguma maneira. A inferência esperançosa que às vezes se segue dessa percepção toma contorno assim: o objeto carrega os rastros de humanos que não conhecemos; o objeto conecta pessoas de maneira invisível e às vezes indecifrável; logo, as pessoas estão interconectadas e não apenas isoladas. 

A tentativa de regozijar-se com a interconectabilidade, porém, deveria ser rapidamente amenizada pelo reconhecimento de que essas formas de interdependência podem se esbarrar nas condições de desigualdade e exploração. Mesmo para Hegel, precursor de Marx, “o Senhor” e “os Escravos” são figuras interconectadas, ainda interdependentes, contudo isto não significa que elas sejam dependentes da mesma maneira, ou que elas sejam paritariamente dependentes. Nem toda interdependência é recíproca. Ainda, cada uma delas negocia uma relação diferente com a vida e com a morte. O Senhor busca consumir o que o Escravo faz para reproduzir a própria vida dele, e o Escravo busca produzir o que o Senhor exige para assegurar as condições de sua própria vida – condições controladas pelo Senhor. Essas relações estão condensadas em sua forma. Porém elas também estão invisivelmente carregas por suas superfícies? Não apenas a forma da superfície, mas também a superfície da forma. O corpo do(a) trabalhador(a) nunca é completamente suprimido pela forma mercadoria porque o(a) trabalhador(a) lança algum rastro invisível do corpo sobre o objeto, e o(a) trabalhador(a) carrega em si rastros invisíveis de outros(as) enquanto trabalha e vive.

Sob condições de uma pandemia tal como a COVID-19, trabalhar sobre e com objetos de troca potencialmente contribui para o alastramento de células virais letais. Em geral, mesmo fora das condições de pandemia, se questionamos a forma geral do rastro humano que a embalagem carrega, nós também estamos questionando as condições de vida e de morte sustentadas pela organização social do trabalho. Quem arrisca sua vida enquanto trabalha? Quem trabalha até a morte? Qual mão-de-obra é mal paga e categoricamente dispensável e substituível? Sob condições de pandemia, essas questões gerais se intensificam. Aqueles(as) que estão potencialmente ameaçados(as) pelo trabalho que realizam incluem os(as) prestadores(as) de serviços de saúde que trabalham sem máscaras apropriadas, os(as) desprotegidos(as) e sobrecarregados(as) trabalhadores(as) da Amazon, o(a) trabalhador(a) dos correios e dos serviços de entrega que não tem como saber se o rastro letal é transmitido para ele(a) ou através dele(a) enquanto carrega embalagens e produtos, aquele(a) que vive com esse medo, mas não pode perder seu emprego, aqueles(as) que estão desempregados(as) e dependem da distribuição pública de comida, aqueles(as) para quem a rua é passagem e abrigo, aqueles(as) que estão abrigados(as) em condições superlotadas e perigosas, como as prisões ou as unidades de acolhimento provisório para pessoas em situação de rua, e aqueles(as) que apenas conseguem se alimentar com o que encontram pela rua.

Marx e Hegel promovem ainda um antropocentrismo segundo o qual a marca ou o rastro humano anima o objeto com uma vitalidade especificamente humana. O(a) trabalhador(a) tem sua vida tomada pelo seu trabalho, mas a mercadoria emana uma vida ainda mais vibrante. E se o objeto que alguém necessita é também aquilo que ameaça sua vida? Não o objeto em si, mas o objeto manuseado, aquele que carrega o rastro do outro. O vírus age sobre a superfície, mas a superfície também age. O vírus entra no corpo, age sobre as células, penetrando em suas ações, e as leva a agir sobre outras células. Todas essas operações ocorrem enquanto os humanos atuam. O humano é apenas uma parte da cadeia de ações. O desafio epidemiológico é parar a cadeia. Felizmente, o objeto não pode transmitir o vírus se estiver coberto de sabão ou se sua superfície for radicalmente não porosa. Então, a porosidade do objeto contribui para a transmissão; o objeto é definido em parte por sua porosidade: na medida em que ele pode absorver ou comunicar outro conjunto de materiais. Porosidade é parte da definição de humanos e de objetos; é também outra maneira de entender suas inter-relacionalidades como potencial inter-penetrabilidade. “Ficar em casa” deveria limitar essa porosidade, a possibilidade da transmissão do vírus entre humanos e através de objetos e superfícies. E, entretanto, aqueles(as) sem-teto, que vivem sem abrigo, ou apenas em abrigos provisórios, ou aqueles(as) forçados(as) pela lei a se abrigarem em estruturas cheias de gente demais não conseguem manter a distância social e não podem contar com a forma duradoura e segura de um refúgio que deveria os(as) proteger contra à exposição ao vírus. Esta é apenas uma forma de desigualdade, de exposição e de risco desiguais. Aqueles(as) que foram privados(as) de acesso a bons cuidados de saúde podem muito bem encontrar o vírus com a imunidade comprometida, com condições médicas pré-existentes. Não é nenhuma surpresa que, estatisticamente, os(as) afro-americanos(as) tenham uma chance maior do que os(as) brancos(as) nos EUA de se tornarem sintomáticos, sofrerem em maior número e necessitarem de hospitalização para manterem-se vivos(as).

Na superfície, por assim dizer, a transmissão do vírus através dos objetos não se dá tal como a transformação de valor-trabalho em valor de troca. Afinal, o vírus parece levar o mercado e as finanças a uma estagnação. A bolsa de valores tem caído, salários e poupanças estão desvalorizados e os empregos têm desaparecido. Ao mesmo tempo, contudo, outro mercado rapidamente emerge para lucrar com a pandemia. Muitos críticos sociais têm já publicado sobre coronavírus e capitalismo, abrindo um campo vital de pensamento e ativismo. Está em jogo se o capitalismo aproveitará a pandemia como uma nova oportunidade de acumulação de riqueza para quem tem capital ou se a pandemia irá assinalar o capitalismo desenfreado, nos lembrando a condição global que agora toca todas nossas vidas. Enquanto alguns sustentam que as desigualdades serão intensificadas sob as condições da pandemia e as consequências disso, outros sustentam que as comunidades de cuidado que estão se organizando agora despertam ou dão nova forma ao potencial do socialismo, da solidariedade horizontal e de uma ética genuína do cuidado. O fato é que não sabemos. Quando o discurso público se volta a essa questão – Como o mundo irá recomeçar? – podemos imaginar que esse seja o mesmo mundo (cujas desigualdades serão intensificadas) ou um novo mundo (no qual reconheceremos nossa radical igualdade e interdependência). Minha aposta é que o conflito entre essas visões se tornará mais enunciado. A emergência climática contínua, certamente, exige que reduzamos a produção, a extração, as perfurações [fracking] e os danos ambientais que cada vez mais destroem os modos-de-vida dos indígenas. O vírus coloca em primeiro plano as diferenças raciais e geopolíticas do sofrimento; vimos claramente a resposta racista às condições de pandemia na Índia através da culpa à minoria muçulmana, nos EUA e na América Latina através do racismo contra os asiáticos, e o fracasso voluntário do Estado israelense em fornecer assistência médica a Gaza, onde a população palestina é contida à força em alojamentos bastante próximos, com instalações de saúde radicalmente inadequadas. A negligência voluntária dos efeitos letais da pandemia nas prisões é um tipo de assassinato por omissão. Esse novo modo de sentença de morte não passa de um outro exemplo das formas que os(as) encarcerados(as) são considerados(as) como populações descartáveis, aqueles(as) cujas vidas “não valem a pena” salvar. Efetivamente, a pandemia intensifica a luta contra o capitalismo e seu sistema de desigualdades, a destruição do planeta, a subjugação e a violência coloniais, a luta pelos direitos dos sem-teto e dos encarcerados, das mulheres, das pessoas queer e trans, e de todas aquelas minorias cujas vidas não são consideradas importantes. Ao mesmo tempo em que isso nunca esteve tão evidente, que uma vida está vinculada a outra vida e que esses vínculos cruzam regiões, linguagens e nações, prenunciando um comitê de solidariedade global para o estabelecimento de condições vivíveis para todas as vidas, está também manifesto que as profundas e intensificadoras desigualdades têm novas oportunidades de se vivificar sob condições de pandemia. Podemos prever e profetizar em direção à utopia ou à distopia, mas nenhuma dessas opções nos ajudam a contrapor com um constante ativismo a distribuição obscena dos sofrimentos, agora, em marcha.

Sim, o vírus nos vincula através de seus objetos e superfícies, através do encontro próximo entre estranhos e familiares, confundindo e expondo os laços materiais que condicionam e ameaçam a perspectiva da própria vida. Mas essa igualdade perigosa e potencial é transfigurada em um mundo social e econômico que impõe suas inúmeras formas de desigualdade bem como a explícita demarcação das vidas descartáveis. As comunidades de cuidado que construímos podem muito bem prenunciar uma igualdade social mais radical por vir, mas se permanecerem delimitadas pela comunidade, linguagem e nação locais não veremos a tradução bem-sucedida do experimento comunitário em política global. As superfícies da vida ensinam aos seres humanos sobre seu mundo compartilhado, insistindo que nós estamos interconectados. Porém enquanto os cuidados de saúde permanecerem insustentáveis e inacessíveis para muitos, enquanto os ricos, os xenófobos e os racialmente privilegiados persistirem na arrogante convicção que eles serão os primeiros na fila para qualquer vacina que surja, para o promissor antiviral ou para o acesso ao plasma rico em antibióticos, esses mesmos laços estarão quebrados e arruinados e as desigualdades intensificadas. E a consequência disso é nítida: a vida é apenas um direito dos privilegiados. O vírus não traz lições de moral; ele é aflição sem justificativa moral. E, no entanto, nos dá uma visão refratada da interconexão potencial de uma solidariedade global. Isso não acontecerá por si só, mas apenas por meio de uma luta que agora se renova, sob encerro, em nome da igualdade do viver.

—Berkeley, 12 de abril de 2020

Traduzido por Sérgio Andrade


Judith Butler é Professora Maxine Elliot no Departamento de Literatura Comparada e no Programa de Teoria Crítica na University of California, Berkeley. É autora e coautora de mais de uma dezena de livros, incluindo Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity [1990] (Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade); Bodies that Matter: On the Discursive Limits of Sex [1993] (Corpos que importam: o limite discursivo do sexo); Excitable Speech [1997] (Quem canta o Estado-Nação? Língua, política, pertencimento); Precarious Life: Powers of Violence and Mourning [2004] (Vida precária: o poder do luto e da violência); Undoing Gender [2004] (Desfazer o gênero); Frames of War: When is Life Grievable? [2009] (Quadros de guerra: Quando a vida é passível de luto?); Notes Toward a Performative Theory of Assembly [2015] (Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia); The Force of Non-Violence: An Ethico-Political Bind [2020] (A força da não violência: um vínculo ético-político). Seus livros já foram traduzidos para mais de 20 idiomas.

Sérgio Andrade é artista e professor de dança, performance e filosofia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), vinculado ao Departamento de Arte Corporal e ao Programa de Pós-Graduação em Dança. Coordenador do Laboratório de Crítica / UFRJ. Co-organizou a publicação Performar Debates (2017). Atualmente, é visiting scholar no Instituto Hemisférico (2020-2021), laborando o seu projeto de livro Tele(contra)coreografias.

Endnotes

    Works Cited